Ciência
15/01/2016
Estudos levantam novas dúvidas sobre a diversidade e a antiguidade das sobre as pontas de pedra brasileiras e das culturas que os produziram
por Peter Moon | Agência FAPESP
Mercedes Okumura
As pontas rabo de peixe são comuns na Argentina e no
Uruguai. No Brasil, os registros são esporádicos. Os pesquisadores
reuniram 32 pontas, a maioria do Sul e Sudeste do país.
O roteiro consensual da história do povoamento das Américas
diz que os primeiros paleoíndios vindos da Ásia cruzaram o estreito de
Bering no fim da Idade do Gelo, há mais de 13 mil anos. Nos milênios
seguintes, as tribos paleoíndias se espalharam pela América no Norte e,
em seguida, pela América do Sul. O estudo de pontas de projéteis em pedra lascada está intimamente ligado à origem das pesquisas sobre o povoamento das Américas.
Tudo começou em 1929, quando pontas de pedra de 13.500
anos foram achadas perto da cidade de Clovis, no Novo México, Estados
Unidos. Por mais de meio século, aquelas pontas longilíneas foram
brandidas pela arqueologia norte-americana como provas de que a chamada
cultura Clovis seria a mais antiga do hemisfério – apesar de indícios
crescentes vindos da América do Sul de que aquele não seria o caso.
Como ficou constatado nos últimos 20 anos, sítios pré-históricos
sul-americanos como Monte Verde, no Chile; El Abra, na Colômbia; Piedra
Museo, na Argentina; ou Taima-taima, na Venezuela, foram contemporâneos
de Clovis – se não mais antigos. Foram ocupados desde fins do período
Pleistoceno por paleoíndios. Outrossim, as pontas lascadas achadas
nestes sítios sul-americanos não só são muito diferentes das de Clovis
como são também muito diversas entre si.
Quanto tempo foi necessário para que tribos vindas do Norte pudessem se
espraiar pela América do Sul ao ponto de as pontas de suas armas se
diferenciarem tanto? Essa resposta ainda não existe. Dois estudos
recém-publicados sobre as pontas de pedra brasileiras levantam novas
dúvidas sobre a diversidade e a antiguidade daqueles instrumentos e das
culturas que os produziram.
O primeiro estudo sistemático das pontas de pedra no estilo rabo de
peixe achadas no Brasil tem coautoria da arqueóloga Mercedes Okumura, do
Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da Universidade de São Paulo
(USP), pesquisadora responsável pelo projeto Métodos
estatísticos aplicados à questão da caracterização de indústrias
líticas paleoíndias: estudos de caso no Sudeste e Sul do Brasil, apoiado pela FAPESP. Okumura, atualmente, está no Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Já o segundo estudo, A ocupação paleoíndia no estado de São Paulo: uma abordagem geoarqueológica II,
também apoiado pela FAPESP, busca entender a distribuição e o uso das
pontas de projéteis em pedras achadas no Sul do Brasil. A autoria é de
Okumura e do arqueólogo Astolfo Araujo, do MAE/USP.
Datações diversas
As pontas rabo de peixe, que como o próprio nome indica têm este
formato, são muito comuns na Argentina e no Uruguai. “No Brasil, os
registros são esporádicos. Fizemos uma varredura nos acervos de museus e
coleções particulares e reunimos 32 pontas, a maioria do Sul e Sudeste
do país, mas também do Mato Grosso e de Goiás. Achamos até duas pontas
coletadas na Bahia e no Amazonas,” diz Okumura. “Até pouco tempo era
consenso de que as pontas rabo de peixe eram típicas do Uruguai e da
Argentina. Hoje se sabe que elas também ocorrem, embora em menor número,
no Brasil e em pontos tão ao norte quanto Venezuela e Guiana.”
As pontas rabo de peixe aqui do cone sul são muito diferentes tanto das
pontas de pedra de Monte Verde, no sul do Chile, quanto daquelas da
Colômbia e Venezuela, “embora estes sítios sejam todos contemporâneos”,
revela Okumura. As pontas sul-americanas igualmente em nada lembram as
pontas norte-americanas. É mais um indício que exclui a hipótese
americana da ancestralidade de Clovis com relação às culturas
paleoíndias.
“O que isso significa?”, questiona-se Okumura. “Será que a diversidade
de todas estas pontas não poderia indicar uma antiguidade maior do
povoamento da América do Sul?” Na Argentina, as pontas rabo de peixe têm
datações que variam entre 12.900 e 12.300 anos. No Brasil ainda não há
datas, ou porque as pontas coletadas foram encontradas na superfície, ou
porque simplesmente não se conseguiu datar. As datações em Monte Verde
apontam para 13.500 anos, mas já se sabe que aquele sítio era ocupado há
pelo menos 18.000 anos. No Brasil, os sítios arqueológicos com datação
mais antiga são Santa Elina, no Mato Grosso, com 25 mil anos, e Pedra
Furada, no Piauí, com 32 mil – mas ambos os resultados estão longe de
serem aceitos consensualmente pela academia.
“O mais interessante do nosso artigo é poder apresentar pela primeira
vez todo esse material”, diz Okumura. “É um convite aos demais
pesquisadores para que comecem a prestar atenção nestas pontas que são
encontradas em locais tão distantes quanto o Sul, o Nordeste e a
Amazônia. O que isso pode significar em termos de ocupação do
território, de migrações, de sistemas de troca?”
Um próximo passo da pesquisa será o estudo da origem das rochas usadas
nas pontas, a maioria feita de silexito, basalto ou lamito. Outra futura
direção é procurar saber de que modo as pontas eram utilizadas: se em
lanças, flechas, projéteis ou facas. “As mais compridas e afiadas podem
ter sido usadas como dardos ou lanças”, diz Okumura. Com o uso frequente
e progressivo desgaste ou quebra, as pontas eram relascadas e
reutilizadas em outras funções. “Há pontas que, de tanto ser relascadas,
perderam totalmente o formato original e se tornaram toquinhos, que
chamamos de raspadores. Nosso estudo suscita muito mais perguntas do que
fornece respostas. Infelizmente, esse é o preço do pioneirismo,” diz a
arqueóloga.
Tradição Umbu
O segundo trabalho faz um levantamento dos projéteis pertencentes à
chamada tradição Umbu, “que leva este nome por causa de uma localidade
no Rio Grande do Sul onde foram encontrados, nos anos 1970”, explica
Araujo. Trata-se do primeiro trabalho sistemático feito com esses
materiais brasileiros e que procura entender a sua função e o seu uso.
Só foram estudados projéteis oriundos de sítios arqueológicos com
datações precisas, todos no Sul do País. “Em todo o Brasil, há somente
oito sítios arqueológicos com datações aceitáveis e com um bom número de
pontas”, explica Okumura.
Os 463 projéteis investigados têm datações que vão desde o início do
Holoceno, há 11 mil anos, passando pelo Holoceno médio, há cerca de 5
mil, até chegar ao Holoceno recente, há apenas 600 anos. O estudo da
função dos projéteis indicou que uma porção muito pequena era empregada
como flechas. A esmagadora maioria eram dardos de arremesso. “O porquê
desta predileção dos povos da tradição Umbu por dardos de arremesso nós
não sabemos”, diz Araujo.
O que mais chamou a atenção dos pesquisadores foi a relação entre o
tamanho das pontas e a sua antiguidade. “Nós tínhamos a expectativa de
detectar no estudo o mesmo padrão encontrado na América do Norte, ou
seja, quanto mais antigos os sítios arqueológicos, maiores seriam os
projéteis, e quão mais recentes, menores”, explica Okumura. Isso tem a
ver com o surgimento da tecnologia de arco e flecha na metade do
Holoceno e o padrão de substituição dessa tecnologia ao longo do tempo.
“Mas o padrão que detectamos foi exatamente o inverso. O que se vê são
pontas de dardos grandes ocorrendo em toda a amostra e pontas pequenas
no sítio mais antigo, de quase 11 mil anos.”
Para tentar elucidar a questão, é preciso encontrar novos projéteis em
escavações e com boa datação. Uma outra linha de pesquisa seria entender
a morfologia dos projéteis, os estudos dos materiais empregados, a
análise do seu desgaste e de suas fraturas.
“O trabalho foi feito para chamar a atenção para esses projéteis em
termos de sua função, de seu uso na pré-história”, afirma Okumura.
“Assim como se deve começar a prestar atenção nas pontas rabo de peixe,
nós também apontamos para a necessidade de os arqueólogos começarem a
pensar na função dos projéteis da tradição Umbu.”
.
Fonte: National Geographic
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Mas, sou um historiador, é por isso que amo a vida”.
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