O sol do meio dia produz um calor desumano. Faz quase um ano que não cai sequer uma gota de chuva no sul do Piauí, uma das mais secas regiões do Brasil. Sigo os passos do arqueólogo francês
Eric Boëda, enquanto enxugo o suor que escorre pelo meu rosto. Após
quatro semanas de trabalho duro com picaretas, pás e pincéis, durante
esse causticante julho de 2012, a missão que acompanho alcança seu
último dia de campo.
Estamos no sítio Vale da Pedra Furada, no Parque Nacional da Serra da Capivara,
em um buraco de 30 metros quadrados que pode chegar à profundidade de 5
metros. Descemos ao local mais fundo, uma área coberta com lonas azuis.
Cheio de cuidado, Boëda retira os lastros que prendem o plástico ao
chão e expõe um tesouro produzido durante a pré-história do homem.
Um círculo irregular de pedras está semienterrado no chão de arenito
pardo. Com um brilho nos olhos azul-claros e um sorriso no meio da
volumosa barba, Boëda pergunta a mim, em um inglês cheio de sotaque
parisiense: “Vê as partes escuras? É carvão. Junto a essas rochas
dispostas desse jeito? Tudo isso é uma fogueira”. Ao redor, foram
encontradas pedras lascadas. “Enfim”, diz o arqueólogo, “estamos em um
sítio que reúne evidências importantes de que tenha mais de 22 mil anos.
Era isso o que procurávamos. Estava bem na nossa frente”, arremata.
Mas por que pararam nesse ponto? Por que não escavaram toda a fogueira?
Por que o trabalho foi interrompido diante de uma nova evidência de que
a região talvez seja uma das mais antigas moradas do homem americano? A
explicação de Boëda a minhas dúvidas traria novas camadas de
complexidade às questões centrais do enigma do povoamento das Américas.
A localização do sítio Vale da Pedra Furada é estratégica. Essa região agreste foi parte da fronteira entre Mata Atlântica e Floresta Amazônica, até que há 10 mil anos uma grande seca transformou tudo em Cerrado e Caatinga. Quase tudo: a mata relictual nos boqueirões da Serra da Capivara
se compõe de árvores tropicais, que sobrevivem graças à umidade entre
as pedras. Na Toca do Boqueirão da Pedra Furada, o mais famoso ponto de
visitação do parque, uma longa passarela de metal permite a apreciação
de mais de mil pinturas rupestres. Abaixo da estrutura fica um enorme
vão, que evidencia os 400 metros quadrados de escavação ocorrida ali. “O
lugar tem um ar refrescante comparado ao calor ao redor. A presença da
água e a beleza das formações areníticas avermelhadas, formando colunas,
justificam seu uso como um centro cerimonial em diversos períodos”,
explica a arqueóloga Gabriela Martin no livro Pré-história do Nordeste do Brasil.
Homens pré-históricos viveram no sudeste do Piauí por milhares de
anos. Grupos atravessavam a floresta tropical em direção aos paredões e
cânions da serra, onde pernoitavam e faziam pinturas e cerimônias. A
área era repleta de abrigos, alguns próximos a fontes de água, e a mata
abrigava em torno de 70 espécies de mamíferos - Ilustração: Alexandre
Jubran
Ao percorrer esse museu ao ar livre, pode-se ver em detalhes artes de
múltiplas cores: amarelo, branco, cinza, preto, vermelho. Duas tradições
de pintura predominam: Nordeste e Agreste, correspondentes a grupos
étnicos com técnicas, temáticas rupestres e épocas de vida diferentes no
decorrer de longos milênios da pré-história. Alguns grafismos são
pequenos, de traços finos, feitos na altura da mão. Outras pinturas,
maiores, preenchidas com tintas claras e escuras, alternam seus tons por
meio de um sofisticado uso de máscaras. Outras artes foram feitas em
locais altos, de difícil acesso, a 12 metros do solo. Os desenhos, tão
humanos, geram um sentimento de déjà vu. Os temas trazem à tona
caçadas, animais extintos (como as capivaras, que dão nome ao parque),
guerras, homens e mulheres, sexo em grupo, cerimônias de êxtase, luta,
seres antropomorfos, dança e até um beijo.
A complexidade dos painéis é única no mundo “e constitui um acervo
imagético diversificado e mais numeroso que todos os sítios da região
franco-cantábrica”, diz a antropóloga Anne-Marie Pessis, comparando a
Capivara com as famosas pinturas encontradas em Lascaux, na França, e
Altamira, na Espanha. As pinturas do Piauí impressionam ainda mais por
estarem em um local rodeado por pedras descomunais. O conjunto se
assemelha a um anfiteatro esculpido em rocha.
O BPF, sigla pela qual o boqueirão é classificado pelos pesquisadores, é
cenário de uma antiga e tinhosa polêmica arqueológica. Em uma escavação
feita entre 1978 e 1988, pela arqueóloga brasileira Niéde Guidon, foram
achadas centenas de seixos lascados, estruturas de pedras (leia-se
antigas fogueiras) e dezenas de carvões. Algumas amostras foram datadas,
pela técnica do carbono 14 (radiocarbono), entre 6 e 48 mil anos de
idade. Durante quatro anos, de 1987 a 1990, o arqueólogo italiano Fabio
Parenti buscou comprovar a veracidade da origem dos seixos encontrados
no BPF. Ele analisou 2 mil amostras de seixos, catalogou 595 delas como
antrópicas e agrupou 46 datações de radiocarbono em fases
cronoculturais, de 5 mil anos a 50 mil anos antes do presente (ou BP,
before the present, sigla usual no meio), associando períodos de tempo a
ocupações e suas respectivas tecnologias de lascamento de pedra e
elaboração de ferramentas. A conclusão de Parenti foi que ali havia
seixos em que a forma de lascamento evidenciava uma intenção, um modo de
pensar – considerando não apenas uma origem humana para eles mas também
propondo que o homem esteve na Pedra Furada por dezenas de milhares de
anos, de forma quase contínua.
Na edição de dezembro de 1994 do jornal acadêmico inglês Antiquity,
os arqueólogos americanos David Meltzer, James Adovasio e Tom Dillehay,
depois de visitar os sítios brasileiros, não reconheceram a civilização
pré-histórica do Piauí. Quase dez anos depois, outro artigo, na revista
Pergamon, também gerou controvérsia. Na análise dos seixos de quartzo
queimados da Toca do Boqueirão da Pedra Furada, a idade recuou mais
ainda no tempo e ficou entre 30 e 103 mil anos BP. Mas a equipe de
pesquisadores concluiu que as evidências da ligação desses seixos a
atividades humanas não eram seguras. “As datações obtidas para a fase
cronocultural do Holoceno (entre 5 e 10 mil anos de idade) são bem
aceitas. O mesmo não se pode dizer para as datações pleistocênicas
(acima de 12 mil anos), que são as mais antigas da América. O que se
questiona não são os resultados da datação, mas a origem antrópica dos
carvões e das peças associadas”, foi descrito.
Uma teoria aceita de forma irrestrita até o início deste século diz que
o homem entrou nas Américas pelo Alasca, vindo da Ásia, por meio do
estreito de Bering, no finalzinho da última Era do Gelo, ocorrida de 110
mil a 10 mil anos antes do presente. Essa teoria, da década de 1950,
teve como base as descobertas feitas pelo arqueólogo americano Ridgley
Whiteman, em 1929, nas proximidades da cidade de Clóvis, no Novo México,
Estados Unidos. O conjunto de artefatos dali – pedras lascadas,
utensílios, esqueletos de animais – foi catalogado como cultura Clóvis e
sua datação, de 11,4 mil anos, foi estabelecida como a mais antiga
presença humana no Novo Mundo. Ainda segundo a consagrada teoria, a
América teria sido um dos últimos destinos migratórios do Homo sapiens, que teria povoado o continente vindo do norte para o sul.
Para o francês Antoine Lourdeau, professor de arqueologia na
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), “a teoria Clóvis representou a
quebra de um dogma conservador”. Até sua descoberta, a ocupação do
continente era datada entre 4 e 5 mil anos BP. “A América ganhou
antiguidade com a teoria de ocupação humana pela Beríngia”, diz. “O que
procuramos hoje é avançar essa fronteira da ciência, checar novos
lugares e achar outros indícios que comprovem ou alterem a idade da
povoação”, conta Lourdeau, enquanto caminha ao meu lado entre os sítios
Toca da Pena e Toca da Tira Peia. Esse último, pesquisado pela física
Christelle Lahaye, da Universidade Michel de Montaigne, na cidade
francesa de Bordeaux, registrou uma datação além da fronteira Clóvis,
entre 4 e 22 mil anos. O estudo dos achados foi publicado em 2013 no
periódico Journal of Archaeological Science.
Informações controversas para a cronologia da ocupação das Américas não
são uma novidade. Desde o final dos anos 1960, novas descobertas, em
diversos pontos do território, trouxeram à superfície dados divergentes
da teoria Clóvis. Datações mais antigas foram registradas do México à
Patagônia. O sítio de Monte Verde, no Chile, explorado pelo arqueólogo
americano Tom Dillehay e pelo geólogo chileno Mario Pino entre 1977 e
1989, foi datado em 12 500 BP. Anos depois, Pino encontrou artefatos
humanos mais ao sul, com datações que chegam a 33 mil BP. Há outros
sítios relevantes na Colômbia, no Peru e no Brasil, como Santa Elina, no
Mato Grosso, e Lagoa Santa, em Minas Gerais. Entretanto, para uma parte
influente da comunidade científica, tais sítios são considerados
incompletos. O mesmo se passa com o conjunto de artefatos da Capivara,
cuja datação é comprovada, mas cuja origem humana é vista com
incredulidade. De modo geral, a grande discussão sobre a ocupação das
Américas resume-se em descobrir se isso não ocorreu antes do fim da
última glaciação, há 12 mil anos. Será possível que o homem já
caminhasse por essas bandas há mais de 50 mil anos? Afinal de contas,
como ele veio para cá?
Alguns arqueólogos trabalham com a hipótese de a América ter sido
ocupada por caminhos diferentes, porém simultâneos. A hipótese de Niéde
Guidon é que os homens do Piauí podem ter vindo da África. Ela acredita
que há dezenas de milhares de anos o nível do mar seria de 100 a 120
metros mais baixo do que o atual. “De forma acidental, aos poucos, de
corrente em corrente, ilha em ilha, o homem teria achado um caminho da
África para o Brasil”, diz. Outra hipótese seria a vinda do homem via
Pacífico, pelo sul da América, também por meio de uma combinação de
navegações ousadas, ventos e marés favoráveis. Há a ideia de uma viagem
pela Groenlândia, pela costa do Atlântico. Se usou Bering, esse
ancestral veio para a América antes do período glacial, há 100 mil anos,
e teria, pouco a pouco, explorado o continente. Boëda, por sua vez,
questiona a teoria Clóvis: “Não tem lógica o homem ter atravessado o
estreito de Bering há 12 mil anos e, logo depois, em um período máximo
de mil anos, estar presente em todo o continente. Para que tanta pressa
para andar uma distância tão grande?”
Em busca de tantos elos perdidos, aporto em São Raimundo Nonato, a 30
quilômetros do Parque Nacional da Serra da Capivara, após longas horas
de voo e estradas esburacadas. Meu anfitrião nessa jornada é o fotógrafo
André Pessoa, que vive aqui de forma intermitente há mais de duas
décadas. Chego em um momento em que posso entender o significado da
palavra caatinga – as árvores estão tão secas que os seus galhos
retorcidos ficaram esbranquiçados (caatinga significa “mata branca” em
tupi).
Com o isolamento e o calor abrasivo, apenas a cultura da maniçoba e a
pecuária conseguiram movimentar a economia da cidade até os meados de
1970. Hoje, São Raimundo é um centro comercial regional movimentado. A
região abriga enorme biodiversidade e foi cenário de lutas contra o
tráfico e a caça comercial de animais silvestres, prática que dizimou,
por exemplo, uma espécie antes comum, o tatu-canastra.
A Toca da Entrada do Pajaú foi um dos primeiros sítios descobertos
na região, em 1973. O lugar é um abrigo natural, onde despontam várias
pinturas rupestres no paredão de arenito. Fogueiras e pedras lascadas
achadas ali foram datadas em quase 7 mil anos - Foto: André Pessoa
O acesso à cidade de 32 mil habitantes melhorou há um ano, com a
pavimentação de alguns trechos de estrada. Mesmo assim, para percorrer a
distância de 525 quilômetros até Teresina, são necessárias oito horas
de cuidados ao volante. Enquanto isso, a obra do aeroporto teima em ser
motivo de promessas políticas há pelo menos 15 anos. “Todo ano vai sair,
e todo ano não sai”, reclama Niéde Guidon, que trabalha na região há 40
anos e há 20 preside a Fundação Museu do Homem Americano (Fumdham).
O relógio ainda não alcançou a marca das 7 da manhã, e sigo com Niéde
enquanto ela busca, ao lado de uma pesquisadora portuguesa da
Universidade de São Paulo, autorização para escavar em uma lagoa seca.
Descendente de franceses, a paulista de Jaú, que já passou dos 80 anos,
tem mais fôlego que uma tropa de jovens pesquisadores. Niéde foi uma das
criadoras da Fumdham, em 1988, e é a responsável por atrair
financiamentos, pois a fundação não recebe subsídios diretos do governo
federal. A instituição tem como objetivo a preservação do parque
nacional e emprega quase 140 funcionários. Um museu, seis laboratórios
de pesquisa, uma biblioteca, um centro cultural e um campus
universitário formam um sistema interligado de estudos, pesquisas,
trabalho e documentação. Para conhecer os laboratórios, requisite o
acompanhamento de um dos 25 técnicos da fundação e ele irá lhe
apresentar as unidades de cerâmica, lítica e de paleontologia. Você verá
a colagem de micropartes de urnas funerárias, a meticulosa separação de
milhares de seixos lascados e a catalogação de presas de mastodontes,
entre outros restos de paleoanimais.
Na época em que Niéde aportou na região, não havia sequer a suspeita de
que o sul do Piauí pudesse abrigar tradições de pinturas rupestres e
uma indústria lítica tão característica, com seis fases cronoculturais
de ocupação pré-histórica. A destruição de sítios prosperava, sem
nenhuma fiscalização, sob a ameaça de exploradores de calcário e da
própria população, que desconhecia seu valor. Niéde arregaçou as mangas.
Peitou os caçadores que invadiam as áreas preservadas e ficou conhecida
pelo ritmo incansável de trabalho, com pesquisas de campo que duravam
mais de 30 dias, sem local para banho e com a toalete improvisada atrás
de mandacarus frondosos.
O verdadeiro ineditismo das pesquisas de Niéde não veio da localização
inóspita dos sítios, mas da forma como ela escavou cada um deles. “Niéde
sempre cavou até o fundo do terreno, até atingir a rocha, em uma época
em que só se escavava até a profundidade estratigráfica de 11 mil anos.
Ir além disso era considerado desnecessário. Afinal, esse era o limite
da ocupação humana do continente – um verdadeiro tabu, que ela
extrapolou em dezenas de escavações”, conta a arqueóloga Gisele Daltrini
Felice.
Niéde abriu a primeira área de escavação em 1978. Anos depois, após
muitas análises de amostras, ela compartilhou a perplexidade de suas
descobertas em uma edição da revista inglesa Nature de 1986. O artigo
dizia: “A visão de que o homem não chegara à América antes da última
glaciação tinha sido sustentada pelo fato de que os sítios não eram, até
então, muito antigos. Mas agora nós informamos que uma datação, feita
pela técnica do carbono 14, de um sítio brasileiro, estipula que o homem
vive na América do Sul há pelo menos 32 mil anos BP”. A repercussão foi
ríspida e o artigo não foi aceito por grande parte da comunidade
científica americana. “Levantaram vários argumentos contra a teoria.
Primeiro, as pedras achadas no local poderiam ter sido lascadas de forma
natural, enquanto caíam de cima do boqueirão até o solo. Segundo, as
fogueiras poderiam ter sido originadas em um incêndio causado por um
raio. Por fim, a comunidade esperava mais e mais publicações a respeito.
De qualquer forma, foi com essas críticas que nasceram outras
pesquisas”, explica.
Gisele buscou responder a uma das críticas: a das fogueiras. Rastreou a
área da Pedra Furada em busca de marcas e rastros de possíveis
incêndios – que seriam a explicação natural, segundo dúvidas de
pesquisadores, para o grande número de fogueiras achadas nas entranhas
do boqueirão. No final da década de 1990 e início dos anos 2000, abriu
escavações para todos os lados ao redor do BPF. Em cada trincheira,
escavou até a rocha, ultrapassando milhares e milhares de anos de
camadas de sedimentos. Um dos sítios abertos por ela é o Vale da Pedra
Furada, onde encontrou artefatos antrópicos de até 18 mil anos BP. A
pesquisa segue com Eric Boëda. Gisele, durante todo o estudo, não
encontrou, em nenhum dos níveis, carvão. Se tivesse havido um incêndio
natural no lugar, era de esperar que existissem muitos carvões
espalhados de forma aleatória. “Para os carvões encontrados no BPF,
sobrou apenas uma explicação: eles pertenceram a fogueiras humanas”,
comenta.
Igualmente instigantes são as pesquisas paleontológicas que ocorrem
fora dos limites do parque, em lagoas e cavernas. A razão é a natureza
geológica do terreno: no parque, o arenito predominante corrói os
fósseis após 6 mil anos. Já o terreno calcário e as lagoas, abundantes
fora dos limites da serra, conservam os ossos.
Franceses, o paleontólogo Claude Guerin e a arqueóloga Martine Faure
trabalham no Piauí há 25 anos. Ambos moram em Lyon e lecionam na
Université Claude Bernard Lyon 1 e na Université Lumière-Lyon 2. Nesse
longo tempo, escavaram dez sítios e acumulam 8 mil fósseis analisados e
identificados. São os únicos, além da arqueóloga Marguerite Hugueney,
que têm estudado mamíferos fósseis na Serra da Capivara. “Quando
chegamos aqui, vimos que a região era um celeiro de novas frentes de
trabalho”, diz Claude, cheio de entusiasmo do alto dos seus 73 anos.
Seguimos juntos pela rodovia BR-020 até o sítio Toca de Cima dos Pilão.
Nosso objetivo é visitar uma caverna calcária em que vários ossos
antigos de animais foram encontrados. Dentro da gruta escura, mal posso
ver onde estou pisando. Claude me guia até o limite de uma queda de 12
metros. Ele se curva e analisa o acentuado declive, enquanto quer que eu
veja onde estavam as presas de tigre-de-dente-de-sabre, ossos de
preguiças-gigantes e esqueletos de homens. Teriam eles vivido aqui na
mesma época?
Este crânio, encontrado no sítio arqueológico Toca do Gongo I, tem
2,1 mil anos. O terreno arenítico corrói fósseis após 6 mil anos. Porém,
em maciços calcários, já foram achados esqueletos com datações mais
antigas - Foto: André Pessoa
Algumas análises ainda estão no início. “Em 2011, achamos pela primeira
vez um fragmento de mandíbula de capivara. O mesmo aconteceu com a ema.
Mesmo com muitos desenhos nas pedras, só achamos um osso da ave, há
quatro anos”, diz Martine. Pergunto a eles se, após todos esses anos de
pesquisa, eles estão próximos de compreender as correlações entre o
homem e a paleofauna. “Do que se pode ter certeza é que os homens que
viviam por aqui eram caçadores de primeira. Em uma só escavação, achamos
em uma sepultura coletiva, ao lado de esqueletos humanos, um colar com
600 caninos de raposa, outro com um adorno de osso de veado e mais um
com pingentes de caninos de onça”, diz.
Deixamos a gruta e caminhamos até a beirada da escarpa. Em nosso
caminho, uma mata fechada com urtigas, xique-xiques e bromélias, da
mesma espécie que há 15 mil anos também atrapalhava outra caminhada, a
do rei da pré-história. “Daqui, o tigre-de-dente-de-sabre podia ver
tudo”, comenta Claude, enquanto apreciamos a vista: um extenso vale, que
se prolonga até as reentrâncias do parque nacional, alguns quilômetros à
frente. “Pode-se dizer que os mamíferos e os grandes animais
permaneciam todos na área abaixo. E o homem ficava lá do outro lado,
onde podia se abrigar e sair para caçar. Na época, havia 70 espécies de
mamíferos, embora os homens do Pleistoceno não tivessem os meios para
caçar os grandes animais da megafauna, como o mastodonte, a
preguiça-gigante, o toxodonte e o tigre-de-dente-de-sabre”, complementa.
Claude e Martine sentenciaram que o tigre e o homem habitaram a gruta em épocas separadas. “Depois da extinção
do felino, o homem passou a habitar essa caverna. Homem e paleofauna
podem ter vivido juntos, mas ainda buscamos comprovações mais sólidas”,
diz Martine, que, ao lado de Claude, batizou em 2013 a terceira espécie
de mamífero de grande porte encontrada ali, o Piauhytherium capivarae.
Caminho pelo fundo ressequido da Lagoa dos Porcos, no município de São
Lourenço do Piauí, uma área rural no caminho que segue até a Bahia. Em
seu entorno, observo o esqueleto de um jumento, distante 800 metros da
área de escavação. Terá sido dessa mesma maneira que muitos animais
morreram por aqui na pré-história? A lagoa não por acaso foi escolhida
por Niéde Guidon e Gisele Daltrini Felice. Após tantos anos de pesquisa,
Niéde resolveu intensificar as escavações em sítios naturais fora dos
limites do parque nacional para elaborar um mapa hidrográfico da
pré-história. “O rio Piauí, que dá nome ao estado, tem 40 metros de
largura em seu trecho mais largo, mas já teve mais de 1 quilômetro. Ao
saber o caminho e a extensão do antigo curso dele, poderemos achar e
mapear mais sítios, pois o homem buscava abrigos protegidos próximos a
uma fonte de água”, diz.
Se tudo na região está ligado à importância de comprovar a antiguidade
da habitação humana, por quê, afinal, Eric Boëda não escavou toda a
fogueira que encontrou no sítio do Vale da Pedra Furada? Ela pode
indicar que o povoamento das Américas começou antes do que se acredita?
Sob a chefia de Boëda desde 2008, a Missão Franco-Brasileira veio seis
vezes ao Piauí com o objetivo de encontrar evidências que ajudem a
elucidar o quebra-cabeça que um dia irá contar como foi a ocupação do
homem não só na região mas também em toda a América e no mundo – Boëda
coordena pesquisas na Síria, na China e na Coreia do Sul. “Toda uma
cultura pré-histórica pode ser compreendida por esses cortes nos seixos,
pelos quais entendemos a utilidade e os movimentos que o homem fazia ao
segurá-los. Não preciso do cadáver, mas de sua obra, pela qual posso
entender como ele pensava”, enfatiza.
Gisele buscou responder a uma das críticas: a das fogueiras. Rastreou a
área da Pedra Furada em busca de marcas e rastros de possíveis
incêndios – que seriam a explicação natural, segundo dúvidas de
pesquisadores, para o grande número de fogueiras achadas nas entranhas
do boqueirão. No final da década de 1990 e início dos anos 2000, abriu
escavações para todos os lados ao redor do BPF. Em cada trincheira,
escavou até a rocha, ultrapassando milhares e milhares de anos de
camadas de sedimentos. Um dos sítios abertos por ela é o Vale da Pedra
Furada, onde encontrou artefatos antrópicos de até 18 mil anos BP. A
pesquisa segue com Eric Boëda. Gisele, durante todo o estudo, não
encontrou, em nenhum dos níveis, carvão. Se tivesse havido um incêndio
natural no lugar, era de esperar que existissem muitos carvões
espalhados de forma aleatória. “Para os carvões encontrados no BPF,
sobrou apenas uma explicação: eles pertenceram a fogueiras humanas”,
comenta.
Igualmente instigantes são as pesquisas paleontológicas que ocorrem
fora dos limites do parque, em lagoas e cavernas. A razão é a natureza
geológica do terreno: no parque, o arenito predominante corrói os
fósseis após 6 mil anos. Já o terreno calcário e as lagoas, abundantes
fora dos limites da serra, conservam os ossos.
Franceses, o paleontólogo Claude Guerin e a arqueóloga Martine Faure
trabalham no Piauí há 25 anos. Ambos moram em Lyon e lecionam na
Université Claude Bernard Lyon 1 e na Université Lumière-Lyon 2. Nesse
longo tempo, escavaram dez sítios e acumulam 8 mil fósseis analisados e
identificados. São os únicos, além da arqueóloga Marguerite Hugueney,
que têm estudado mamíferos fósseis na Serra da Capivara. “Quando
chegamos aqui, vimos que a região era um celeiro de novas frentes de
trabalho”, diz Claude, cheio de entusiasmo do alto dos seus 73 anos.
Seguimos juntos pela rodovia BR-020 até o sítio Toca de Cima dos Pilão.
Nosso objetivo é visitar uma caverna calcária em que vários ossos
antigos de animais foram encontrados. Dentro da gruta escura, mal posso
ver onde estou pisando. Claude me guia até o limite de uma queda de 12
metros. Ele se curva e analisa o acentuado declive, enquanto quer que eu
veja onde estavam as presas de tigre-de-dente-de-sabre, ossos de
preguiças-gigantes e esqueletos de homens. Teriam eles vivido aqui na
mesma época?
Este crânio, encontrado no sítio arqueológico Toca do Gongo I, tem
2,1 mil anos. O terreno arenítico corrói fósseis após 6 mil anos. Porém,
em maciços calcários, já foram achados esqueletos com datações mais
antigas - Foto: André Pessoa
Algumas análises ainda estão no início. “Em 2011, achamos pela primeira
vez um fragmento de mandíbula de capivara. O mesmo aconteceu com a ema.
Mesmo com muitos desenhos nas pedras, só achamos um osso da ave, há
quatro anos”, diz Martine. Pergunto a eles se, após todos esses anos de
pesquisa, eles estão próximos de compreender as correlações entre o
homem e a paleofauna. “Do que se pode ter certeza é que os homens que
viviam por aqui eram caçadores de primeira. Em uma só escavação, achamos
em uma sepultura coletiva, ao lado de esqueletos humanos, um colar com
600 caninos de raposa, outro com um adorno de osso de veado e mais um
com pingentes de caninos de onça”, diz.
Deixamos a gruta e caminhamos até a beirada da escarpa. Em nosso
caminho, uma mata fechada com urtigas, xique-xiques e bromélias, da
mesma espécie que há 15 mil anos também atrapalhava outra caminhada, a
do rei da pré-história. “Daqui, o tigre-de-dente-de-sabre podia ver
tudo”, comenta Claude, enquanto apreciamos a vista: um extenso vale, que
se prolonga até as reentrâncias do parque nacional, alguns quilômetros à
frente. “Pode-se dizer que os mamíferos e os grandes animais
permaneciam todos na área abaixo. E o homem ficava lá do outro lado,
onde podia se abrigar e sair para caçar. Na época, havia 70 espécies de
mamíferos, embora os homens do Pleistoceno não tivessem os meios para
caçar os grandes animais da megafauna, como o mastodonte, a
preguiça-gigante, o toxodonte e o tigre-de-dente-de-sabre”, complementa.
Claude e Martine sentenciaram que o tigre e o homem habitaram a gruta em épocas separadas. “Depois da extinção
do felino, o homem passou a habitar essa caverna. Homem e paleofauna
podem ter vivido juntos, mas ainda buscamos comprovações mais sólidas”,
diz Martine, que, ao lado de Claude, batizou em 2013 a terceira espécie
de mamífero de grande porte encontrada ali, o Piauhytherium capivarae.
Caminho pelo fundo ressequido da Lagoa dos Porcos, no município de São
Lourenço do Piauí, uma área rural no caminho que segue até a Bahia. Em
seu entorno, observo o esqueleto de um jumento, distante 800 metros da
área de escavação. Terá sido dessa mesma maneira que muitos animais
morreram por aqui na pré-história? A lagoa não por acaso foi escolhida
por Niéde Guidon e Gisele Daltrini Felice. Após tantos anos de pesquisa,
Niéde resolveu intensificar as escavações em sítios naturais fora dos
limites do parque nacional para elaborar um mapa hidrográfico da
pré-história. “O rio Piauí, que dá nome ao estado, tem 40 metros de
largura em seu trecho mais largo, mas já teve mais de 1 quilômetro. Ao
saber o caminho e a extensão do antigo curso dele, poderemos achar e
mapear mais sítios, pois o homem buscava abrigos protegidos próximos a
uma fonte de água”, diz.
Se tudo na região está ligado à importância de comprovar a antiguidade
da habitação humana, por quê, afinal, Eric Boëda não escavou toda a
fogueira que encontrou no sítio do Vale da Pedra Furada? Ela pode
indicar que o povoamento das Américas começou antes do que se acredita?
Sob a chefia de Boëda desde 2008, a Missão Franco-Brasileira veio seis
vezes ao Piauí com o objetivo de encontrar evidências que ajudem a
elucidar o quebra-cabeça que um dia irá contar como foi a ocupação do
homem não só na região mas também em toda a América e no mundo – Boëda
coordena pesquisas na Síria, na China e na Coreia do Sul. “Toda uma
cultura pré-histórica pode ser compreendida por esses cortes nos seixos,
pelos quais entendemos a utilidade e os movimentos que o homem fazia ao
segurá-los. Não preciso do cadáver, mas de sua obra, pela qual posso
entender como ele pensava”, enfatiza.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
“Se eu fosse a um antiquário, só teria olhos para as coisas velhas.
Mas, sou um historiador, é por isso que amo a vida”.
Marc Bloch